De Sarah Jones
Resumo
Analisar o Projeto de Lei 2510/2020 de autoria do Senador Luiz do Carmo (MDB/GO) e relatoria da Senadora Zenaide Maia, bem como as proposições de alterações legislativas civis e penais propostas aponta uma reflexão importante sobre o limite de atuação estatal nos regramentos internos disciplinados nos condomínios edilícios. Essas normativas internas cogentes representadas pela Convenção, pelo Regimento Interno e pelas deliberações assembleares possuem atores legitimados à elaboração do seu conteúdo de acordo com a instalação e especificação condominial somada às normas de boa convivência social.
Palavra-chave: Violência – domiciliar – familiar- vulneráveis – condomínios edilícios– ilegitimidade estatal.
O Projeto de Lei nº 2510/2020[2], de autoria do Senador Luiz do Carmo (MDB/GO) e relatoria da Senadora Zenaide Maia, apresentado ao Senado Federal em 08 de maio de 2020 teve aprovação em 08 de julho após o acolhimento de algumas emendas apresentadas e atualmente se encontra na Câmara de Deputados para apreciação e votação.
A justificação do projeto perpassa o cenário atual de crescente violência doméstica contra a mulher, idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência no país advinda do isolamento social decorrente da COVID-19 recomendado ou determinado, respectivamente, por autoridades de saúde e governos estaduais e municipais.
Os registros apontam o aumento expressivo dos casos de violência, bem como a elevação das medidas protetivas em caráter de urgência a partir do mês de março do corrente ano, somado ao incremento do número de prisões em flagrante decorrentes da violência doméstica, realidade infeliz que põe o Brasil no quinto lugar entre os países mais violentos do globo.
Pela proposta legislativa apresentada ao Senado Federal com aprovação do substitutivo em julho, tem-se por sustentáculo a alteração da Lei nº 4.591/64 (Condomínio Edilício e Incorporações Imobiliárias), a Lei nº 10.406/02 (Código Civil) e o Decreto-lei nº 2.848/40 (Código Penal), para estabelecer o dever de condôminos, locatários, possuidores e síndicos informarem às autoridades competentes os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher de que tenham conhecimento no âmbito do condomínio, além do aumento da pena do crime de omissão de socorro, quando se tratar de mulher em situação de violência doméstica ou familiar.
Das 21 (vinte e uma) emendas apresentadas pelos Senadores, 14 (quatorze) foram acolhidas ensejando destaque preliminar ao acréscimo dos atores sociais dotados de vulnerabilidade representados pelos idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência.
Na justificação da emenda consignada pelo Senador Weverton[3], líder do PT, apontou-se o seguinte:
“(…) as alterações propostas na Lei penal e civis que envolvem de deveres anexos de síndicos, locatários, condôminos e/ou possuidores de unidades habitacionais, onde o confinamento social tende a desencadear o aumento de violência doméstica contra as mulheres, são bem-vindas e dignas de aprovações, no entanto ressalvamos que as sanções previstas nessa lei também deveriam ser entendidas aos casos de violência contra idosos e crianças que, do mesmo modo que mulheres vulneráveis, são também alvos dos mesmos agressores.”
Nas razões ventiladas nas emendas apresentadas, incutiu-se ao reforço legislativo a integração de sua ideia normativa ao sistema protetivo regido pela Lei Maria da Penha, cujo artigo 8º[4] elenca as diretrizes que as políticas públicas de defesa dos direitos da mulher deverão seguir, além das balizas consubstanciadas nas legislações especiais sob o nº 8.060/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), 10.741/03 (Estatuto do Idoso) e 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
Atualmente alguns estados da federação já sancionaram leis que obrigam o síndico a denunciar casos que acontecem no condomínio, sob pena de multa, como foi o caso do Distrito Federal, Rondônia, Paraná, Ceará, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Acre e Maranhão[5].
No escopo legislativo do texto original apresentado para apreciação, mostra-se latente as interferências nas competências internas condominiais dirigidas ao síndico; deveres aos condôminos, locatários e possuidores; vedações às práticas violentas no seio condominial sejam elas praticadas nas áreas comuns ou unidades habitacionais; previsão de multa a todos que habitam o condomínio (condômino, locatários e possuidores); inclusão de nova modalidade de destituição automática do síndico que inobservar o dever de comunição, além de prever a sujeição de multa ao condomínio de cinco a dez salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência, em caso de descumprimento do dever legal de comunição.
No campo civil disciplinou obrigações nas relações condominiais mencionadas alhures ao determinar a sua inclusão nas convenções; extensão de deveres e sanções atribuídos ao síndico; previsão de multa por descumprimento do dever de comunição de violência ao condômino, locatário e possuidor, cujas determinações também se aplicam aos condomínios de lotes, no que for possível.
No campo penal, a proposta de aumento em um terço da pena por omissão de socorro se a vítima for mulher em situação de violência doméstica.
2 – Violência contra a mulher: dados estatísticos
As proposições legislativas ventiladas pelos Senadores encontram baliza em estudos e dados estatísticos coletados por instituições de referência nacional, além de relatar informações internacionais, o que permite a visualização da gravidade instalada mundialmente pelo isolamento e recolhimento social tendo como vetor fundante a COVID-19.
Em 2019, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou pesquisa com dados colhidos pelo Instituto Datafolha ao registrar que 1,6 milhão de mulheres sofreram espancamento durante o ano de 2018, sendo que 76,4% (setenta e seis vírgula quatro por cento) das vítimas conheciam o agressor e 42% (quarenta e dois por cento) dos crimes ocorreram em ambiente doméstico.
Tratando-se de novas demandas ajuizadas no Poder Judiciário, houve um aumento de 10% (dez por cento) em comparação a 2018 (dois mil e dezoito) e os casos de feminicídio que chegaram à justiça saltaram para 1.914 (mil, novecentos e quarenta e um) revelando um crescimento de 5% (cinco por cento) em relação ao referido ano, conforme o Painel de Monitoramento da Polícia Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Esse crescimento espelha a realidade mundial, uma vez que as vítimas de violência doméstica e familiar estão em contato frequente com os agressores, podendo-se apontar como principais causas do crescente registro: a instabilidade e o estresse altos, incerteza profissional e financeira, aumento do consumo de álcool, convivência extrema e, sobretudo, o caráter violento do agressor.
O reflexo estatístico dos dados disponibilizados pela DataSenado[6], em parceria com o Observatório da Mulher, realizado em dezembro de 2019 no país se encontra latente nos condomínios edilícios, sejam eles residenciais, comerciais, verticais ou horizontais, representando um percentual de 82% (oitenta e dois por cento) de episódios de agressões a nível nacional.
No rol das 2.400 (duas mil e quatrocentos) pessoas entrevistadas que conheciam alguma mulher que já sofreu algum tipo de violência, 89% (oitenta e nove por cento) afirmam que a vítima é de seu ciclo de convívio pessoal, logo, não se trata de casos noticiosos ou de conhecimento remoto.
Constatou-se que a violência predominante é a física, que soma 82% (oitenta e dois por cento) da pesquisa, seguida da violência psicológica, com 39% (trinta e nove por cento), e moral, com 33% (trinta e três por cento). A violência sexual foi relata em 13% (treze por cento) das vezes e a patrimonial 11% (onze por cento).
Os principais responsáveis pelas agressões relatadas são companheiros e ex-companheiros, cujo levantamento aponta que cerca de 24% (vinte e quatro por cento) das vítimas ainda convivem com o agressor, 34% (trinta e quatro por cento) dependem dele economicamente e 31% (trinta e um por cento) das entrevistadas afirmaram não ter feito nada em relação a última violência sofrida.
Questionadas sobre a adoção de atitudes após primeira agressão, a denúncia formal representa o percentual de 32% (trinta e dois por cento), sejam em Delegacias Comuns ou da Mulher, enquanto 37% (trinta e sete por cento) afirmaram ter procurado vias alternativas, como família, igreja e amigos. Apenas um quarto das mulheres agredidas buscou o atendimento de saúde após a agressão.
Os resultados colhidos estimam o montante dos subregistros por não comparecimento tanto na saúde, quanto na segurança pública em relação aos casos de violência doméstica.
Ainda com base na pesquisa realizada pela DataSenado, expressivo percentual de 31% (trinta e um por cento) das vítimas nada fizeram em relação à última agressão sofrida, registrando-se denúncia em uma Delegacia Comum no percentual de 17% (dezessete por cento) e apenas 15% (quinze por cento) na Delegacia da Mulher, o que reflete o nível de insatisfação das vítimas ao buscarem suporte e acolhimento no serviço público disponibilizado diante do reduzido número de profissionais capacitados a atender esse tipo de demanda específica ocorrendo, muitas vezes, a figura da vitimização.
Para surpresa no resultado da pesquisa coletada, apenas 1% (um por cento) das vítimas ligaram para a Central de Atendimento à Mulher – 180 ou associação ou entidade especializada.
Constatou-se que 31% (trinta e um por cento) da ocorrência de violência se operou antes dos 19 (dezenove) anos, 38% (trinta e oito por cento) aconteceu entre 20 (vinte) e 29 (vinte e nove) anos e, a partir dos 40 (quarenta) anos, a quantidade de mulheres que sofreram violência pela primeira vez ficou em 19% (dezenove por cento).
Pelas informações colhidas, constata-se claramente a complexidade do tema objeto do Projeto de Lei e os reflexos ali registrados apontam uma sociedade ainda marcada pelo machismo, que se espalha por toda a sociedade brasileira, independentemente da classe social; pela ausência ou precariedade de políticas públicas voltadas às diretrizes delineadas primordialmente na Lei Maria da Penha, que representa um grande marco de quebra de paradigma e fruto da pressão internacional promovida pela Organização das Nações Unidas.
A diminuta conscientização coletiva sobre as legislações especiais e a implementação dos mecanismos preventivos obstaculizadores da violência doméstica e familiar associada ao deficit cultural e educacional somatizam de forma expressiva os dados estatísticos por faltar-lhe recursos financeiros, anseio político e mobilização social.
3 – Proposições legislativas sugeridas, acolhidas e rejeitadas
Adentrando-se no Parecer 81, de 2020[7], sob relatoria da Senadora Zenaide, expõe-se que é crucial a compreensão da situação de violência doméstica e familiar como um problema social estrutural. Para enfrentá-lo é de suma importância o envolvimento e a responsabilidade de cada locatário, condômino, possuidor no que se refere ao cuidado e à denúncia desse tipo de violência.
Em sua análise, a Senadora ressalta as alterações legislativas, no âmbito do condomínio, de modo a propiciar a repressão e investigação dos fatos, bem como adiciona o acréscimo de um dever aos que habitam os espaços coletivos, de maneira a reforçar a necessidade de que brigas, ameaças e maus tratos ocorridos dentro dos lares sejam compreendidos como assunto de interesse público, que merecem a atenção não somente das autoridades como também da vizinhança, a fim de evitar, principalmente, ao pior desfecho.
Feitos os devidos ajustes ao texto original, suprimiu-se a alteração proposta ao artigo 10 da Lei de Condomínios, por dois motivos: a) a proibição da prática desse crime já se encontra extensivamente tipificada na Lei Maria da Penha, que lhe imputa penalidades penais e civis; b) e a penalidade de multa à unidade do condômino onde ocorre a violência pode constituir gravame contra a mulher ou agravar a redução de recursos financeiros familiares justamente em um momento de maior fragilidade.
Introduziu-se dispositivo para constar nas convenções a proibição de que as denúncias e as pessoas nela envolvidas sejam objeto de maledicências no ambiente domiciliar, mantendo-se a multa que incide sobre o condomínio que descumpra o dever de comunicar a ocorrência.
Quanto à disposição penal, sugeriu-se alterar o caput do artigo 135 do Código Penal para incluir na tipificação a omissão de socorro à vítima de violência doméstica, e não como causa de aumento de pena, como consta na proposição, sugestão que foi acolhida diante da correta dosimetria aplicada pelo ordenamento criminal por ser proporcional às penalidades a quem comete as agressões.
Acolheu-se a redução do quórum das assembleias que tratam da aplicação de multas por descumprimento do dever de comunicação estabelecida no Projeto de Lei para maioria absoluta, uma vez que a redução geral do quórum das assembleias condominiais extrapola os limites do tema tratado pela proposição.
4 – Previsões legislativas sobre o dever de comunicação de violência à autoridade competente e a interferência estatal nas normativas internas dos condomínios edilícios
4.1 – Mandamentos penais: dever de comunicação à autoridade competente endereçados à família, à sociedade e ao poder publico
Não há dúvidas de que o Projeto de Lei 2510/20 representa uma grande reflexão de cunho pedagógico sobre a atual realidade de isolamento social promovida pela COVID-19, em que pese as evidências da crescente onda de violência doméstica e familiar popularmente denominada de pandemia paralela transpareça os desafios da materialização dos direitos e diretrizes disciplinados, principalmente, na legislação penal.
Ao analisar o substitutivo do Projeto de Lei, as bases protecionistas (mulher, criança, adolescente, idoso e pessoa com deficiência) contidas nas legislações especiais 11.340/06 (Lei Maria da Penha), 8.096/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), 10.741/03 (Estatuto do Idoso) e 13.416/15 (Estatuto da Pessoal com Violência) preveem a criação das condições necessárias ao efetivo exercício dos direitos previstos nos respectivos ordenamentos jurídicos à família, à sociedade e ao poder público.
Sobre qualquer ato de violência doméstica e familiar será aplicado às normas dos Códigos de Processo Penal, Processo Civil e legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido na Lei Maria da Penha, conforme disposição do art. 13 do referido diploma.
Nesse esteio, todo cidadão tem o dever de comunicar à autoridade competente qualquer forma de violação posta na legislação especial que tenha testemunhado ou que tenha conhecimento, conforme alude o art. 4º[8] e 6º[9] da Lei 10.741/03; art. 13[10] e 70[11] da Lei 8.096/90; e art. 26[12] da Lei 13.416/15.
O dever de comunição sobre atos de violência ou qualquer tipo de tratamento que viole os direitos humanos (em sentido amplo) se amplia a toda a sociedade brasileira sendo inoportuna, com a devida máxima vênia, a interferência do estado nas normativas internas direcionadas ao síndico, aos locatários ou possuidores de condomínios edilícios, uma vez que já há determinação legal nesse sentido com as devidas sanções penais e civis aos descumpridores da lei.
As proposições aprovadas pelo Senado Federal se agravam com a imputação de multa ao condomínio, condôminos, locatários e possuidores em caso de não comunicação das ocorrências de violência doméstica e familiar aos atores vulneráveis, bem como aponta nova modalidade de desconstituição de síndico ou administração, cujas penalidades estariam disciplinadas nas Convenções ou nos Regimentos Internos (leis internas), sem a prévia aprovação dos reais legitimados.
Esta é primeira barreira da ilegitimidade estatal.
4.2 – Partes legitimadas à aprovação e definição das matérias contidas na Convenção de Condomínio, no Regimento Interno e nas Assembleias Gerais
A legislação especial (Lei 4.591/64) e o Código Civil (Lei 10.406/02) trazem em suas matérias específicas os direitos, as obrigações e os procedimentos processuais e administrativos gerais e mais estáveis a serem implementados pelos sujeitos de direito.
Nesse contexto, a matéria condominial comporta mutações contínuas, não sendo crível tão pouco previsível o esgotamento das variadas situações rotineiras que acolhem o mundo condominial nas citadas legislações.
A propósito, o que seria condomínio edilício? Trata-se do conjunto de propriedades exclusivas em uma edificação considerada unitária, com áreas comuns que se vinculam às unidades autônomas[13].
O Código Civil o conceitua no artigo 1.331 definindo as partes suscetíveis de utilização independente e as partes comuns sendo imperiosa a administração dessa edificação e o estabelecimento de regulamentos de uso dessas áreas.
Para tanto cumpre instituir o condomínio por ato entre vivos ou testamento mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns; a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; e ao fim a que as unidades se destinam (art. 1.332, do Código Civil).
A cada unidade imobiliária, como parte inseparável, uma fração ideal no solo e nas outras partes comuns, que será identificada em forma decimal ou ordinária, no instrumento de instituição do condomínio. Tem-se, portanto, a especificação do condomínio.
E o que seria a convenção do condomínio[14]? Respondem João Nascimento Franco e Nisske Gondo: “é a convenção uma autêntica lei interna da comunidade, destinada a regrar o comportamento, não dos condôminos, mas de todas as pessoas que ocupem o edifício, na qualidade de seus sucessores, prepostos, inquilinos, comodatários, etc.”[15]
E em que momento deve surgir a convenção? A resposta é de Roberto Marcelos Magalhães[16]:
“na escritura de convenção, só figuram como outorgantes ou outorgados os condôminos, não se atribuindo propriedade a ninguém. O edifício já deve estar, então, averbado no Registro de Imóveis, o que já faz presumir tenha sido lavrada e assinada a estrutura de discriminação.
A convenção deve ser consequente e não simultânea ao nascimento do condomínio. É impropriedade, pois, chamar-se de Convenção o ato constitutivo do condomínio.”
O surgimento do condomínio, portanto, dá-se com a instituição e especificação, tal como consta do art. 1.332, e não mediante a convenção, como se encontra no art. 1.333, ambos do Código Civil de 2002.
Incumbe, então, identificar o primeiro grupo de legitimados a estabelecer o conteúdo da convenção mencionado no art. 1.334, do Código Civil, sendo importante a definição da forma de administração (inciso II), as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores (inciso IV) e o regimento interno (inciso V). São eles: os titulares de dois terços das frações ideais (proprietários), os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas, salvo disposição em contrário (§2º, do art. 1.334, do Código Civil).
Tratando-se de instituição através de incorporação imobiliária, o incorporador também representa o sujeito legitimado ao determinar o conteúdo da convenção, cuja especialização é indicada nas letras “e” e “i” e a minuta da convenção requerida na letra “j’, todos do art. 32, da Lei 4.591/64.
Uma vez instituído e especificado o condomínio e escriturada a convenção, dispõe-se nesta a escolha do síndico para o exercício das funções de administração condominial, normalmente feita com o auxílio de uma administradora na qualidade de prestadora de serviço, através da assembleia (órgão coletivo de condôminos e moradores), por prazo não superior a dois anos, permitida a reeleição, nos termos do art. 1.347 do Código Civil.
As funções do síndico se encontram perfeitamente delimitadas no Código Civil (art. 1.348), competindo-se a este, dentre as atribuições, a prática dos atos necessários à defesa dos interesses comuns (inciso II), sendo cogente a adoção de medidas administrativas governamentais hábeis a: a) combater, dentre outras responsabilidades, qualquer ato de violência doméstica e familiar à mulher, aos idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência, a fim de contemplar os deveres mais sensíveis impostos pelos diplomas legais; b) prevenir os anseios comunitários e sociais; c) promover assistência ao seio condominial nos assuntos mais críticos que desestabilizam o equilíbrio das relações interpessoais; d) e a garantia de direitos.
Esses são os quatro pilares de uma administração eficiente, regular e conveniente ao condomínio.
Compete ainda ao síndico cumprir e fazer cumprir a convenção[17], o regimento interno[18] (parte integrante da convenção – normas para o comportamento e a conduta dos moradores) e as determinações das assembleias gerais convocadas[19].
Esses três elementos obrigatórios e essenciais à boa convivência são minutados com base no Código Civil, na legislação e deliberados em assembleia pelos proprietários, promitentes compradores, cessionários de direitos relativos às unidades autônomas, incorporadores, síndico e/ou administradoras de condomínios. Portanto, não cabendo ao poder legislativo dispor sobre matérias de caráter privado dos condomínios edilícios por lhe faltar legitimidade e amparo legal para tanto.
Essa é a segunda barreira impeditiva.
Por fim, tratando-se da destituição do síndico disciplinada no §5º, art. 22, do Projeto de Lei 2510/20, uma vez eleito por assembleia dos condôminos especialmente convocada para este fim, também poderá ser destituído o síndico por decisão tomada em assembleia antes do termo final de sua administração.
As hipóteses legais de destituição estão previstas no art. 1.349 do Código Civil ao dispor sobre a não prestação de contas, a prática de irregularidades ou não administração conveniente do condomínio (grau de subjetividade).
Veja-se, mais uma, a atuação dos reais legitimados ao deliberarem sobre a manutenção ou não da sindicatura, o que afasta veementemente a atual do estado.
Essa é a terceira barreira que afasta a interferência estatal nos ditames internos/privados condominiais.
5 – Conclusão
Por tudo quanto exposto, que pese a importância e relevância do tema afeto ao crescimento da violência doméstica e familiar acometidas às mulheres, idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência precipuamente nos condomínios, parece-me equivocada a interferência estatal na definição e conteúdo das normativas internas condominiais por se tratarem de leis internas disciplinadas e deliberadas pelos proprietários, promitentes compradores, cessionários de direitos relativos às unidades autônomas, incorporadores, síndico e/ou administradoras de condomínios.
Isso não significa a ausência de imputação de responsabilidade penal e civil aos cidadãos que descumpram o dever cívico de comunicação de qualquer ato que viole a dignidade da pessoal humana sofrida pelos vulneráveis, seja ele ocorrido em ambiente público ou privado.
Falta ao síndico o manto da “autoridade competente” claramente identificada nas legislações especiais, em que pese ele e todos os cidadãos brasileiros tenham a responsabilidade coletiva de denunciar as atitudes imprimidas desonrosamente pelos agressores.
Estampa-se nas legislações especiais como medida de implementação de política pública à coibição da violência doméstica e familiar um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais através das seguintes diretrizes[20]: a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes sobre a violência; implementação de atendimento especializado; a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar; promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, dentre outros dispostos nas legislações esparsas.
Na prática esse modelo de integração e diretrizes é o “calcanhar de aquilis” do poder público que, fragilmente, transporta ao mundo privado[21] seus deveres mais básicos de atuação governamental.
Nesse momento de apreciação do Projeto de Lei pela Câmara dos Deputados emerge a necessidade de debates com profissionais especialistas que militam na área e sabem as reais deficiências do convívio condominial, além de um envolvimento mais ativo da Ordem dos Advogados do Brasil, do SECOVI e órgão representativos do setor imobiliário, a fim de permitir a criação de uma legislação eficiente.
Referências:
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MAGALHÃES, Roberto Marcelos. Teoria e prática do condomínio.
[1] Advogada especialista em Direito do Estado, MBA em Direito Imobiliário, Árbitra da 2ª Câmara de Conciliação e Arbitragem de Goiânia/GO no período de 2019/2020; articulista.
[2] BRASIL. Senado Federal. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141880. Acesso em 11 de ago de 2020.
[3]BRASIL. Senado Federal. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8862102&ts=1595856627588&disposition=inline. Acesso em 11 de ago de 2020.
[4] Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: I – a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; II – a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas; III – o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1º , no inciso IV do art. 3º e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal ; IV – a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher; V – a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres; VI – a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher; VII – a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia; VIII – a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.
[5] BRASIL. Síndiconet. Disponível em: https://www.sindiconet.com.br/informese/violencia-domestica-em-condominios-convivencia-violencia-domestica. Acesso em: 11 de ago de 2020.
[6] BRASIL. Instituto de Pesquisa DataSenado. Observatório da Mulher contra a violência. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/violencia-contra-a-mulher-agressoes-cometidas-por-2018ex2019-aumentam-quase-3-vezes-em-8-anos-1. Acesso em: 11 de ago de 2020.
[7] BRASIL. Senado Federal. Parecer nº 81, de 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8862738&ts=1595856629281&disposition=inline. Acesso em 11 de ago de 2020.
[8] Art. 4o Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei. § 1o É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso.
[9] Art. 6o Todo cidadão tem o dever de comunicar à autoridade competente qualquer forma de violação a esta Lei que tenha testemunhado ou de que tenha conhecimento.
[10] Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. (Redação dada pela Lei nº 13.010, de 2014)
[11] Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
[12] Art. 26. Os casos de suspeita ou de confirmação de violência praticada contra a pessoa com deficiência serão objeto de notificação compulsória pelos serviços de saúde públicos e privados à autoridade policial e ao Ministério Público, além dos Conselhos dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, considera-se violência contra a pessoa com deficiência qualquer ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que lhe cause morte ou dano ou sofrimento físico ou psicológico.
[13] JÚNIOR, Luiz Antônio Scavone. Direito imobiliário: teoria e prática. – 13. ed. – rev.. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 890.
[14] BRASIL. Senado Federal. Memória Legislativa do Código Civil – mlcc_v3_ed1. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242712. Acesso em: 16 de ago de 2020.
p.109 a 117.
[15] FRANCO, João Nascimento e GONDO, Nissk. Condomínio em edifícios, 3ª ed., p. 51.
[16] MAGALHÃES, Roberto Marcelos. Teoria e prática do condomínio, p. 91.
[17] Geralmente constam itens como a fração das unidades no preâmbulo, bem como, a área total construída do empreendimento, as metragens das unidades, as regras sobre a administração do condomínio, sobre as assembleias e sua obrigatoriedade, as receitas e despesas do condomínio, a obrigatoriedade do seguro e as penalidades previstas por infrações.
[18] É o documento que reúne as normas básicas de convivência dentro do empreendimento. Geralmente os assuntos abordados pelo regimento interno são: uso das partes comuns, horário de silêncio, realização de mudanças, obras e reformas, convívio com animais, vagas de estacionamento, regras sobre aplicação de multas e advertências.
[19] Destina-se à deliberação dos assuntos constantes da ordem do dia sendo que, de acordo com João Nascimento Franco, “a assembleia geral situa-se no plano mais alto, razão pela qual suas deliberações obrigam o síndico, o Conselho Consultivo, os condôminos e demais ocupantes do edifício, salvo no que eventualmente conflitarem com a lei, com a convenção de condomínio, ou quando violarem direitos individuais dos condôminos. Conclui-se, nesse sentido que soa mal, por conseguinte, o chavão que ‘a assembleia é soberana’, comumente utilizado pelo presidente da assembleia para atemorizar os que discordam da condução dos trabalhos ou do império da maioria. Na verdade a assembleia é soberana na medida em que decide de conformidade com a lei e respeitando os direitos do condôminos.” (Condomínio, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 66.)
[20] Disposição contida no artigo 8º da Lei 11.340/06.
[21] BRASIL. Enciclopédia da PUCSP. Direito Público e Direito Privado. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/133/edicao-1/direito-publico-e-direito-privado. Acesso em: 19 de ago de 2020. “Em suma, o direito público é o conjunto de normas jurídicas que se referem às atividades públicas. O direito privado é conjunto de normas jurídicas relativas às atividades privadas (…) No direito privado, portanto, vige um princípio de liberdade. A explicitação desse regime jurídico (público e privado) cabe à dogmática do direito público e à dogmática do direito privado. No primeiro caso, o direito constitucional, o direito administrativo, o direito processual (civil, penal e trabalhista), o direito penal e outros. No segundo, o direito civil, o direito comercial, o direito do consumidor e o direito do trabalho.”